O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá – uma história de amor de aquecer o coração.
Passaram-se mais de quatro anos sem que eu lesse um autor Brasileiro. Não consigo me recordar o último, na verdade. Venho me aventurando por outras terras, outros mares, outras línguas, fugindo da dor de ver meu povo e meu país perdidos em incompreensão mútua, em ignorância aprendida, em ininteligibilidade política. Sinto-me uma refugiada sem lar; sou uma refugiada sem lar – animal sem rumo nem descanso; mas a alma e o coração não perderam o jeito leve, fresco e amável de ser Brasileira.
Quanto mais você se afasta de suas raízes, contudo, mais elas reclamam posse. Elas latejam nas profundezas de seu ser a cada minuto de incerteza, lembrando-lhe o feitio, a tonalidade, a consistência de sua expressão.
Amo a cultura que me criou; amo pertencer a esta idiossincrasia de cores, sons, cheiros, sabores e letras; tão caótica, tão irreverente, tão bela, feliz e envolvente. Voltar a sorver Brasil pelos olhos de Jorge Amado, então, uma benção, concedida por todos os santos e santas da Bahia, que mais são forças autênticas da natureza do que homens e mulheres da Religião.
Que prazer poder mergulhar na imaginação e nos desvarios de um homem apaixonado por seu filho João.
“Esta história é um presente para meu filho João Jorge, em seu primeiro aniversário. Paris, 25 de novembro de 1948.”
Amado é um louco, um insensato. Onde já se viu dar personalidade, sentimento e voz ao Tempo, ao Vento, à Manhã? Fazê-los contar histórias inesquecíveis de amor.
“Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe de esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza”.
Amado me fez recordar cada devaneio da infância. Quando crianças personificamos a Natureza, barganhamos com os deuses e deusas da Criação. “Por que o Tempo, arisco, me foge? Esta Manhã, preguiçosa, que se demora tanto a chegar… Vento, manhoso, se recusa a inflar as velas do meu barco”. Quantas vezes minha mente de menina não se perdeu nestas tolices e Amado, tão certo de que seu menino passaria por todas elas, se antecipou, brindando-o em seu primeiro aniversário com um “mal posso esperar que embarques nestas tonterias, João Jorge, quero voltar a ser criança contigo”.
“Fanática por uma boa história, a Manhã se atrasa ainda mais, atenta ao falatório do Vento, casos ora engraçados, ora tristes, alguns longos, prolongando-se em capítulos de folhetim”.
Amado escreveu não apenas para João, mas para todas as crianças que crescem e que já são crescidas e esquecidas dentro de nós. Uma história de amor tão formosa e sofrida, afinal já dizia o poeta – amar é sofrer e antes sofrer de amor do que não vivê-lo.
“Desejo dizer que há gente que não acredita em amor à primeira vista. Outros, ao contrário, além de acreditar afirmam que este é o único amor verdadeiro. Uns e outros têm razão. É que o amor está no coração das criaturas, adormecido, e um dia qualquer ele desperta, com a chegada da Primavera ou mesmo no rigor do Inverno.
De repente, o amor desperta de seu sono à inesperada visão de um outro ser. Mesmo se já o conhecemos, é como se o víssemos pela primeira vez e por isso se diz que foi amor à primeira vista”.
Mas o ser humano tem uma capacidade infinita para fazer sofrer – quem nos dera fosse para amar. E assim todos os bichos do parque de Amado choram terrivelmente as dores de ser gente – o não compreender do outro apesar de sermos todos semelhantes; o medo de incluir o diferente; as rotineiras intolerâncias do convívio; os pequenos gestos de egoísmo, dissimulação e pirraça; as regras sem serventia que só ousamos quebrar por meio da violência; a renúncia ao verdadeiro amor na esperança de que a resignação possa um dia preencher o vazio; o morrer-se por dentro e por fora sem ele.
“Vida triste minha vida,
não sei cantar nem voar,
não tenho asas nem penas,
não sei soneto escrever.
Muito amo a Andorinha,
com ela quero casar.
Mas a Andorinha não quer,
comigo casar não pode
porquê sou gato malhado,
ai!”
Em cada um dos personagens vemos o reflexo de nós mesmos – nossas mazelas, nossos desejos, mas de uma forma tão bela, poética, harmoniosa e lúcida que nos cativa, enternece, nos aquece o coração.
“Andaram até que a Noite chegou. Então ela lhe disse que aquela tinha sido a última vez, que ia casar-se com o Rouxinol porquê, ai!, porque uma Andorinha não pode casar-se com um Gato. Como já o fizera certo dia, voou sobre ele num vôo rasante, tocou-lhe com a asa esquerda – era sua maneira de beijar – e ele não pôde desta vez ouvir o bater do pequeno coração da Andorinha, tão fracos eram os seu latidos. Pelos ares ela se foi, não olhou para trás”.
Quisera eu que o mundo fosse feito de Jorges e Zélias, e que a cada ano, por conta de um ainda não alfabetizado João, transbordassem tão bela estórias e poemas de amor.
“O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha”.
Trova e filosofia de Estêvão da Escuna, poeta popular estabelecido no Mercado das Sete Portas, na Bahia.